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A medida que cresce, nossas conversas ficam mais complexas. Antes era fome, sono ou dor, hoje é muita personalidade.
Há pouco conversamos sobre um novo programa de governo aqui dentro de casa, o “Chega de Broncas”. Afinal, estávamos vivendo um período chamado “Cheia de Broncas” e assim não podíamos mais permanecer. Uma guinada em nosso comportamento se faz mais do que necessária.
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Clik here to view.– Alice, a gente precisa dar um basta nisso, cara. Tu enrola demais, o pai te pede uma coisa e tu faz outra ou simplesmente não faz na hora que o pai pede.
– Tá, pai.
– Vamos, cara? Vamos fazer o Chega de Broncas?
– Tá, mas só se ficar aquele outro projeto.
– Qual?
– O Sexta-Sorvete.
– Sim! Eu não vou mexer no Sexta-Sorvete, só quero implementar o Chega de Broncas.
A cada ano, mês, semana ou dia existe uma nova Alice. Também existe um novo pai, porém esse tem mais dificuldade nas mudanças.
O dia havia começado bem, preguiçoso, mas bem. Levei a menina na natação, com o corpo pesado, me arrastando. Depois, voltei pra casa com a cabeça no almoço, Gessy me ajudou, buscou a garota na piscina. Ela pediu para assistir televisão, tem direito a um turno, escolhe se de manhã ou noite – a sexta e o fim de semana são mais liberados. Começou uma brincadeira com Gessy, que disse estar ocupada e que seria melhor que as duas brincassem de tarde, quando ela voltasse da escola. Alice, que dificilmente entende na primeira vez, chegou na cozinha.
– Alice, que parte da gente brinca depois tu não entendeu?
A PM (pai mandão) já vem com a intimação verbal!
– Ai, pai…
– Cara, a Gessy precisa trabalhar e falou que brinca contigo depois da escola, depois não adianta tu vir de noite pedir pra assistir televisão, não vai rolar.
Deixou a brincadeira de lado e foi assistir desenhos. Chegou a perua. Hora de ir pra escola. Preparei sua mochila e percebi que ela tinha chegado na sexta-feira com uma tarefa. Passou sábado, domingo, chegou a segunda-feira e lá estava sua tarefa, esquecida e em branco na mochila. O sangue me subiu pra cabeça, como se o erro dela fosse meu, mas, ao invés de eu ser duro comigo, claro que fui com ela.
A PM (pai maluco) ataca novamente.
– Cara, qual é? Desde quando isso tá aqui na mochila?
Fiz isso sem bater, ainda não bati em Alice, mas meus gritos são palmadas travestidas, empurrei ela em sua cama, brabo por ela ainda não ter colocado a meia e, de forma abrupta, ajudei-a a colocar sua meia, tudo de maneira muito enérgica para não dizer estúpida.
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Desceu e, como era de se esperar, assim que passou pela porta com destino à escola a culpa me veio novamente, mas dessa vez era outra, tinha um gosto diferente. Vinha em mim com um gosto de repetição, algo que já provei e tenho provado todo santo dia.
– Que é isso, Ricardo?
Não tinha ninguém que pudesse me responder o que é isso que toma conta de mim, de onde tamanha impacência com uma criança que apenas repete o meu modelo, que tem meus gens. Olhando pra mim, ainda sem conseguir me entender, me dei por conta dos erros constantes na criação e no caos que vai ser o futuro. Se aos sete anos esses são os nossos embates, aos 15 ou 16 então vou explodir?
Me encarei novamente, respirei, voltei para a cozinha, cozinhei.
Conversei com Gessy sobre meus exageros. Ela, como sempre, passou um pano, dizendo que é assim, que às vezes é a única maneira dos pequenos lembrarem.
– Pior que eu já fui assim que nem ela, Gessy, não copiava, não fazia as tarefas, até inventava crises de asma para não ir na aula.
– Então você não era igual a ela, cê era pior…
– Verdade.
– Ó, mas não fica assim…
– Fico, Gessy, não posso mais ser esse monstro com ela.
Tenho consciência de que sou um bom pai, respeito seu espaço e, a cada ano, me retiro mais um pouco para lhe dar mais privacidade. Algumas vezes, em conversas com uma amiga, se lhe pergunto algo vem um…
– Nada, não.
Não escondo minha insatisfação, descontentamento, e novamente a PM (pai monstruoso) indaga:
– Nada o quê? Como assim nada, tu não falou algo?
Porém, devo abaixar minha cabeça e lembrar do seu crescimento e, sim, ela terá seus segredos e nem convém eu antecipá-los. O que é certo é que eu respeite seu espaço e me mostre como amigo, alguém que valha a pena dividir algo.
Nossa relação tem sido de morde e assopra. Escuto dela que sou o melhor pai do mundo (claro que muitas dessas vezes é depois que pago um chocolate), mas ela já me elegeu o melhor contador de histórias e fica feliz quando a coloco pra dormir, não quer que eu saia de perto, eu sempre repito que volto, que ela não vê quantas vezes passo pelo quarto pois está dormindo. Teve um dia, que ela segurou meu braço para eu não sair de perto da cama.
– Fica mais um pouco.
– Não, guria, e não me segura, solta meu braço. Eu volto. Mas não me segura.
Saí do quarto, voltei, vi seu olho semi-aberto e falei:
– Pena que tu tá dormindo, senão tu veria que estou aqui do teu lado.
Ela, sem saber que eu tinha percebido que ela estava acordada, fingiu estar dormindo, um truque que eu achei que tinha inventado na infância. Novamente segurou meu braço, dizendo sem pronunciar uma palavra: “fica aqui mais um pouquinho”.
Alice tem um alto poder de perdoar. Nesse dia ela saiu triste de casa e voltou chorando, havia esquecido um de seus brinquedos novos na escola e tinha medo que alguém encontrasse antes dela e fosse condenada a nunca mais ver sua corujinha de estimação que comprou com o dinheiro que ganhou do avô. Mandei um e-mail pra escola, contando onde ela havia deixado e dando as caracteristicas de sua coruja que, segundo ela, era minha neta.
– Pai, cê mandou o e-mail?
– Mandei!
– Pode ler?
– Posso! “Boa noite. Alice esqueceu um brinquedo na buraqueira dela, brinquedo que ela comprou ontem e ficou bem triste. Enfim, se localizarem por aí ela ficará bem feliz. É uma corujinha de pelúcia azul. Obrigado!”.
Alice agradeceu e disse que, além de ser um bom pai, sou um bom avô também.
Me dei conta há poucos dias antes do dia dos pais que é preciso desmilitarizar esse pai que, sim, busca educar e disciplinar, mas esquece que gritos pouco funcionam. O poder de transformação está no diálogo e na paciência.
A cada ano, vem um chefe maior nesse videogame chamado paternidade e a gente vence sendo inteligente, não truculento. Então, esse PM apenas quer ser todos os dias um pai melhor.=
Feliz dia dos pais e sejamos todos mais felizes!
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